A brasiliense Valéria Cunha Guimarães foi a responsável por trazer ao Brasil o autoexame de tireoide. Sem o trabalho dela, a quantidade de iodo no sal não seria controlada pelo governo. Pois o talento e a dedicação da médica foram reconhecidos internacionalmente. Ela se tornou a primeira brasileira a ganhar o Prêmio a Laureados da Sociedade Americana de Endocrinologista, o Oscar da especialidade. A médica viajará em março para San Diego, nos Estados Unidos, a fim de receber a homenagem.

Valéria nasceu em Brasília, em abril de 1964. Filha de pioneiros, deixou a cidade para estudar. Mas não tinha dúvidas de que voltaria à capital para iniciar a carreira. Minha família estava aqui e eu sentia que tinha muito a contribuir, contou a endocrinologista. Ela cursou medicina na Universidade de Uberlândia, em 1987, fez residência na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e ganhou o mundo. Parte do doutorado foi desenvolvido em Chicago, nos Estados Unidos, onde nasceu o primogênito. De uma família de médicos, Valéria casou-se com um nefrologista e os três filhos escolheram trilhar o caminho dos pais.

Quando voltou a Brasília, ela decidiu ir além do consultório. Em 1999, foi eleita presidente da Regional Distrito Federal da Sociedade Brasileira de Endocrinologia. Começamos a fazer campanha sobre a tireoide. Na época, as pessoas nem sabiam o que era, achavam que era uma doença, relatou. O grupo divulgava o trabalho em locais de grande movimentação. O diferencial é que não ficávamos apenas no diagnóstico, direcionávamos o paciente para tratamento na rede pública ou privada, afirmou.

Durante a campanha, Valéria percebeu que não havia um controle da iodação do sal no Brasil. A campanha gerou muitas dúvidas e começou a haver uma pressão sobre o governo a respeito disso. Teve um impacto muito bom para os pacientes, lembrou. Com o controle do Estado a partir desse episódio, o trabalho desenvolvido por ela foi apresentado em congresso nos Estados Unidos. Depois, a médica foi eleita presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia. Ela também conquistou uma vaga no conselho da Sociedade Internacional de Endocrinologia e foi convidada a participar da associação americana, sendo, inclusive, indicada para assumir a presidência por duas vezes.

Luta

À frente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia, a brasiliense travou outra batalha em prol da população. A Organização Mundial da Saúde (OMS) iniciou uma campanha contra a obesidade e elaborou o documento Estratégia global de dieta, atividade física e saúde, mas o governo brasileiro não quis assinar. A medida, entre outros pontos, previa a diminuição de açúcares e gorduras em alimentos. O governo era pressionado pela indústria da cana de açúcar para não aprovar. Conseguimos, no Congresso Nacional, uma convocação para que representantes dos ministérios da Agricultura e das Relações Exteriores se explicassem. O sucesso foi tanto que nós nos tornamos coautores do documento brasileiro, contou Valéria, que não contém as lágrimas quando lembra a trajetória até agora e o reconhecimento do esforço com o prêmio internacional.


Três perguntas para Valéria Cunha Guimarães, endocrinologista:

Ganhar o Prêmio a Laureados é um reconhecimento de tudo o que a senhora fez até agora?

Fui indicada ao prêmio por serviços públicos extraordinários prestados à sociedade e concorri com colegas excelentes, que trabalharam com o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e com professores de Harvard, em Massachusetts, nos Estados Unidos. Sinto que ele não é só meu, a gente não faz isso sozinha. O prêmio é de todos que reconheceram o plural. Também fico muito feliz por ter sido possível fazer com que as pessoas percebam a importância dessa área. Nunca imaginei que chegaria aonde cheguei, só queria ser uma boa médica.

Tem algum trabalho do qual se orgulha mais?

O que acho mais importante é o do período em que trabalhava na Sociedade Internacional de Endocrinologia. Eu tratava de câncer de tireoide e tem um exame, o PET scan, que identifica o tumor. Em 2006, ele só podia ser feito em São Paulo ou no Rio de Janeiro. O monopólio do material radioativo era da União, mas a radioatividade dele é muito curta. Esse material saía da Central Nacional de Medicina Nuclear e tinha que ser usado até uma hora depois, não conseguia viajar para Brasília, Porto Alegre ou Macapá. Fomos ao Congresso e pedimos para quebrar o monopólio, queríamos que o enriquecimento do material fosse feito no local de uso. Fizemos o regulamento e conseguimos quebrar a emenda à Constituição que determinava isso. Hoje, o Brasil inteiro tem o PET scan. Fico muito satisfeita quando o resultado de um exame como esse chega nas minhas mãos.

O que a senhora acha do Sistema Único de Saúde?

A concepção do SUS é genial. Se entendermos o funcionamento no papel, podemos perceber que ele é capilarizado, onde as coisas funcionam. Mas nossos políticos acabaram com ele. Nossos médicos são muito bons, sei disso porque atendo pacientes de embaixadas e eles querem ser tratados aqui. Quando os brasileiros viajam, voltam ao país para ir ao dentista ou consultar um médico. Se dessem ao médico e a qualquer outro profissional o respeito que eles merecem, o que eles precisam para trabalhar, seria muito diferente. Não somos culpados pelo remédio que falta. O sistema só vai mudar quando os nossos políticos forem se tratar no hospital público, quando as nossas lideranças, quando eu e você usarmos. Se eles não usam o SUS, quem vai acreditar nele?