Jornalista: Rosângela Bittar

11/03/2015 - A endrocrinologista brasiliense Valéria Guimarães nunca trabalhou no sistema público de saúde, mas lhe foi atribuído, no sábado, nos EUA, um prêmio internacional por sua atuação em saúde pública. Reconhecido como o "Oscar da medicina", o prêmio assim é considerado porque se aplica em um sistema de indicações pelos pares e seleção de um grupo qualificado, como se faz no prêmio americano de cinema.

 

Concedido anualmente pela direção da Sociedade Americana de Endocrinologia, onde têm assentos alguns vencedores do Prêmio Nobel que analisam as indicações, a premiação contempla várias categorias e escolheu a médica de Brasília, cidade reconhecida nacionalmente como o fim do mundo em atendimento à saúde, para receber o de "serviços públicos extraordinários".

Valéria concorreu com especialistas que estavam trabalhando em saúde pública no governo Barack Obama, com professores de Harvard e com líderes de projetos governamentais de várias partes do mundo. Sua carta de indicação foi assinada por professores da Universidade de Brasília, da USP e da sociedade brasileira de endocrinologia, além de dois professores americanos, um de Columbia e outro de Connecticut. Indicação densa.

Uma das hipóteses de a médica brasiliense ter superado seus concorrentes é o conjunto da obra. Enquanto os indicados concorrem, normalmente, com um trabalho, Valéria teve sua atuação analisada em períodos em que correram três movimentos nítidos de ação de interesse público.

Ocorridos também em etapas diferentes de sua carreira, em todos eles mobilizou a sociedade, teve apoio da imprensa e, principalmente, estimulou políticos e parlamentares a usar seus mandatos para resolver problemas.

É no ambiente do poder, em Brasília, que Valéria, de 51 anos, com marido também médico e três filhos estudantes de medicina, maneja as soluções. Nascida num ambiente de forte simbologia na cidade - Hospital de Base, ano de 1964 do golpe militar -, ela se moveu e ainda se move para realizar ações de saúde pública a partir do seu consultório, onde pratica a medicina privada. As ações vêm ocorrendo desde 1997.

O primeiro movimento ocorreu quando Valéria presidia a Sociedade Regional de Endocrinologia do Distrito Federal. Na sua experiência de atendimento em saúde, havia notado que a população considerava a tireoide uma doença, e não uma glândula. "Eu tenho tireoide" era a frase que mais ouvia nos relatos sobre mal-estar.

Fez uma campanha intensa de esclarecimento em parques, shoppings, rodoviária, igrejas, templos evangélicos e em todos os lugares que permitiam aglomerações para explicar que os sintomas poderiam estar relacionados ao mau funcionamento da tireoide, e não à sua existência. E introduziu nessas rodas, pela primeira vez, o autoexame da tireoide, ensinando como fazê-lo à frente de espelhinho.

Na liderança de um grupo de médicos, Valéria não só fazia o diagnóstico como o tratamento, em parcerias com laboratórios de análises clínicas e de imagem. "Atingíamos todas as classes sociais: na rodoviária estavam os mais pobres; no parque da cidade, a classe média que fazia exercícios; nos shoppings, os mais ricos. Montávamos nossos estandes, ensinávamos a fazer o autoexame, educávamos com palestras. Foi tomando proporção."

Panfletos da campanha eram distribuídos nas igrejas e nos templos, após Valéria convencer as associações religiosas. "Quem tem problema de tireoide e não sabe o que é, vive rezando. As igrejas foram locais maravilhosos para levarmos a campanha."

Em parceria com a mídia local, a médica passou a ser observada e o Ministério da Saúde acabou envolvido para tentar explicar por que havia tanto problema de tireoide na região. Começou-se a estudar a iodação do sal e, embora tivessem descoberto que não era só esse o vilão, percebeu-se que as salineiras estavam sem controle. Era o governo Fernando Henrique Cardoso e o então ministro da Saúde José Serra teve que promover maior vigilância sobre a iodação, já que algumas empresas faziam demais, outras, de menos.

O governo foi em cima das salineiras e a comunidade internacional ficou atenta ao projeto, convidando Valéria a fazer palestras para contar como conseguia implementar as parcerias. Assim concluiu três anos de campanha contínua.

No segundo movimento, Valéria já estava eleita para a presidência da Sociedade Brasileira de Endocrinologia, trabalho em que se destacou na questão da obesidade e de seu principal agente, o açúcar. A médica destaca a excelência do Brasil em algumas áreas onde tem o respeito da Organização Mundial de Saúde, como vacinação, programa de amamentação, controle de tabagismo e remédios de ponta para o tratamento de aids. Mas, nos anos de 2003 e 2004, a OMS esperava sentada pela assinatura do governo brasileiro e referendo do Congresso a um documento de base científica para prevenção da obesidade no mundo inteiro.

Um grupo de cientistas trabalhou na formulação de documento sobre a evidência científica das causas da obesidade. Açúcar, gordura trans, excesso de sal, falta de fibra, de verduras e frutas estavam nos primeiros lugares do ranking do mal.

A assinatura no acordo fazia o país-membro da OMS a se comprometer com medidas como, por exemplo, controle sobre a indústria alimentícia e controle de lanchonetes de escolas para torná-las saudáveis, além de uma série de outras políticas públicas.

Ninguém entendia as razões do Brasil para não assinar o acordo internacional. O problema chegou a Valéria na sociedade brasileira com a seguinte equação: o Ministério da Saúde queria assinar, mas os da Agricultura e Relações Exteriores não queriam.

Já era o governo de Luiz Inácio Lula da Silva quando descobriu-se que o lobby do açúcar, forte nos grandes produtores Brasil, Cuba e Venezuela, barrava a adesão.

"A recomendação era quanto ao açúcar livre, da bala, do refrigerante, a caloria vazia, que só engorda e não nutre, não é como a caloria do pão", afirma. Valéria pôs em ação seu método: procurou um deputado médico do PSDB, Eduardo Guerra, e mostrou o constrangimento pelo qual passava o Brasil. Ele reuniu três comissões da Câmara, ela reuniu 14 entidades médicas, da endocrinologia à diabetes, e seguiram para o Congresso. Disso resultou uma carta de recomendação à Casa Civil, à época com o ministro José Dirceu, com um apelo ao governo para assinar o documento da OMS. Novamente o papel da mídia foi importante para expor, segundo Valéria, os obstáculos no governo criados pelo lobby do açúcar.

Com a assinatura, as providências foram imediatas. O Ministério da Educação passou a implementar a escola saudável, a merenda escolar adequada; o ministério da Saúde, a fazer o controle da gordura trans; e a médica foi coautora de documento oficial sobre o acordo, reproduzido em cartilhas espalhadas pelo país.

Chega-se ao terceiro movimento, quando Valéria já está na Sociedade Internacional realizando trabalhos conjuntos com a Sociedade Americana de Endocrinologia. Trabalhou em várias frentes, uma delas, de que se orgulha, foi aproximar grandes pesquisadores espalhados pelo mundo de grandes institutos de pesquisa que deles precisavam. É dessa época, porém, o programa que mereceu destaque para a premiação, uma ação, originada no consultório particular, considerada revolucionária para a saúde pública nos últimos anos.

Não havia, no Brasil, com exceção dos dois grandes hospitais de São Paulo, o Sírio-Libanês e o Albert Einstein, equipamento para realizar o PET, o exame radiológico de corpo inteiro para mapear o câncer. Valéria enviava seus pacientes para São Paulo, para Baltimore (EUA), sempre com grandes dificuldades para as famílias, que se deslocavam de suas cidades.

Quando tratava uma paciente da família do senador Jorge Bornhausen, ele quis saber por que não era possível fazer o PET em todo o país. "Explicamos: o produto radioativo tem curtíssima duração. Se o contraste do PET demora duas horas em média de ação, até chegar a Brasília, Manaus, ao Rio Grande do Sul, já acabou. O exame custava caríssimo, a fila era grande."

O senador convidou-a, e ao médico nuclear Jairo Vargas, do Einstein, para escrever a sustentação técnico-científica a uma emenda constitucional de quebra do monopólio da União sobre o produto. "Se deixasse que a gente enriquecesse o contraste no local do uso, o Brasil inteiro teria PET", diz. "A senadora Kátia Abreu saiu pedindo assinaturas pessoalmente. Foi aprovado em todas as comissões, a Câmara aprovou, o Senado correu. Em menos de um ano tínhamos quebrado o monopólio."

Ao constatar que está sendo premiada por ações de saúde pública sem jamais ter se vinculado ao sistema público de saúde, Valéria Guimarães afirma que "não é preciso estar no SUS para fazer um serviço público extraordinário. Como cidadãos, identificados os problemas, todos podem fazer".

Fonte: Valor Econômico